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Na aduana de saída na Letônia, o guarda estranhou:
-Cadê o visto de entrada da Rússia?
-Nós brasileiros não precisamos mais de visto desde setembro do ano passado.
-Tem certeza?
-Tenho.
Ele ficou bolado, pois todos os europeus precisam!
-Acho que os russos vão encrencar com esse monte de bagagem que vocês estão levando.
-É bagagem pessoal, não tem nada demais.
-Tome cuidado na Rússia. É um país violento.
Mal sabia ele que na Escandinávia tinham nos dito o mesmo da Letônia.
E não vimos violência na Letônia!
Quando a aduana é complicada, a grande malandragem é buscar as menores fronteiras durante os domingos.
Menos gente atravessando e guardas menos irritados.
Tenho que assumir que a esculhambação que o Tapa faz nas aduanas quebra o gelo dos fiscais e o processo acaba ficando bem mais descontraído.
Nesta aduana, os russos só falam russo e te dão um formulário em cirílico, o alfabeto russo, para ser preenchido.
Meu camarada... O cirílico é uma espécie de grego de cabeça para baixo. Os guardas vão tentar te explicar tudo, em russo, claro!
Foi um duro exercício na arte da comunicação, interpretação e solução.
E eu achando que saber falar "dva piva" que significa duas cervejas, simplificaria nossa vida... Ledo engano.
Na Rússia, russo fala só russo.
Não sabe russo? Então, aprenda rápido!
O primeiro impacto, além do idioma, é do preço das coisas.
Apenas Tóquio consegue ser mais cara que Moscou.
Tudo é caro, com exceção do diesel.
A Rússia é o maior produtor mundial de petróleo, seguido pelos Estados Unidos e Arábia Saudita.
Nossa primeira parada foi em Pskov.
Lá tivemos nosso primeiro contato com as lindas catedrais russas.
Subimos, rumo ao norte, em direção a São Petersburgo.
Nossa meta agora era fazer a Rodovia Transiberiana inteira. De ponta a ponta.
A Rodovia Transiberiana começa em São Petersburgo e termina em Vladivostok, no mar do Japão.
Mais de dez mil quilômetros, oito fusos horários diferentes, um terço da circunferência total do planeta.
Tínhamos um bocado de chão pela frente.
São Petersburgo é a cidade mais "européia" da Rússia.
Ampla, bonita e com construções imponentes.
Antes de entrar em Moscou fizemos um circuito chamado Anel de Ouro.
São várias cidades muradas e em seus interiores estão catedrais e outras construções. São os kremlins russos.
Nossa primeira parada foi na mais bonita de todas: Sergiev Posad.
Passamos por Veliky Novgorod...
... Que fica à beira do rio Volkhov.
Kremlins sempre coloridos e bem preservados.
Passamos também por Rostov...
... Yaroslav´...
... Kostroma...
... E Suzdal.
Também passamos por casas estranhas...
... Carros esquisitos...
... Até chegarmos à inconfundível Moscou.
Uma cidade que deixa qualquer turista, de qualquer idade, de qualquer país, embasbacado.
O Kremlin de Moscou é imponente, colorido, bem preservado e com uma arquitetura única.
Ele é muito mais bonito e impressionante do que esperávamos.
A Rússia também tem seu ônibus espacial, e sua réplica encontra-se no parque de diversões da cidade.
Tapa, como sempre, fez uma grande esculhambação.
Vale a pena ir à Rússia só para ver Moscou... De tão linda e impressionante que é a cidade.
Pegamos a estrada, e pouco sabíamos o que veríamos pela frente.
Sabíamos que o único fast food que haveria na Sibéria seríamos nós... Para os ursos.
Vimos ursos enjaulados em paradas na estrada e a pele de outros com bem menos sorte.
Cruzamos uma infinidade de vilas no meio do nada.
O inverno dava lugar à primavera e o gelo derretendo criava uma paisagem linda e momentânea.
Mesmo após o inverno, passamos por áreas com muita neve e pegamos algumas nevascas.
Tanques de guerra são monumentos comuns nas estradas.
Tanques anfíbios também...
... Mas gostei mesmo foi do ônibus siberiano.
O lendário caminhão russo Kamaz, modelo que atende a equipe de apoio no Paris-Dakar, é o transporte coletivo dos russos.
Passamos por mais de 500 blitz policiais.
Umas de verdade e outras nem tanto.
Muitos carros de polícia, de mentira, ficam à beira da estrada só para os motoristas maneirarem na velocidade.
A gente só descobre que são de mentira quando chegamos perto. É muito engraçado!
Mesmo assim, tomamos várias duras de verdade.
Passamos por Kazan, com seu Kremlin, e uma atípica mesquita.
Essa região próxima ao Cazaquistão é bastante influenciada pela cultura mulçumana.
Lá, por acaso, assistimos à uma parada militar.
Passamos por "Longeov-pra-Karalhovski"...
... E por "Muito-Longeov-pra-Karalhovski!" Lá onde vento faz a curva.
Até chegarmos à Irkutsk, considerada a "Paris da Sibéria".
"Paris" é exagero, porém é uma cidade grande, com boa estrutura, e que impressiona muito por estar no meio do nada.
Igrejas ortodoxas coloridas e lindíssimas.
A praia dos russos de Irkutsk é o lago Baikal, o mais profundo do mundo.
Na primavera, já é possível navegar em sua água absurdamente cristalina.
Porém, um mês antes, era possível cruzar o lago inteiro de carro, por cima de sua casca de gelo, dura como cimento.
À medida que subíamos para o norte, encontrávamos praias completamente diferentes do que estamos acostumados a ver.
Visuais absolutamente fantásticos.
Até que chegamos à uma parte do lago onde tudo ainda estava congelado.
Cruzamos com o trem siberiano diveeeeersas vezes.
E depois de três semanas de viagem chegamos à longínqua Ulan Ude.
Um pedaço da Rússia onde os russos altos e louros, cedem espaço aos russos com aparência asiática.
Ali, pertinho da fronteira com a Mongólia, fomos à uma vila budista...
... Com templos coloridos...
... Monges budistas...
... Num lugar no meio do nada, que passa uma sensação de paz tão grande, que dá vontade de ficar ali por horas e horas.
Não pudemos cruzar para Mongólia pois não deixariam o Tapa voltar para a Rússia por problemas de raiva na região.
Entre Chita e Kabharovsk existe um trecho de 2500 quilômetros sem nada, segundo as poucas fontes de informações.
Este seria o trecho mais desafiador.
Em Chita abastecemos o carro para cinco dias de autonomia.
Enquanto eu arrumava o carro em pé na parte traseira, ouvi a Ana gritando desesperadamente de longe:
-Cuidado Gustavo!!!!!
Quando virei vi um cara puxando uma faca!
Só pensei em duas palavras:
Pronto... Morri.
E o cara com um sorriso dourado (muitos russos da Sibéria têm ouro nos dentes) disse:
-Russian present.. Safari !
-"Spasiba, my friend"!! respondi aliviado e surpreso (Spasiba = obrigado, em russo).
Isso mesmo meu amigo. Embaixo da casca dura dos russos, existe um bom coração.
Poucos minutos depois vimos na beira da estrada um cara implorando ajuda e ninguém parava.
Foi o momento de retribuir a gentileza russa.
Fizemos uma chupeta no carro de um camarada chamado Sasha.
Depois de trinta minutos de tentativas deu tudo certo e ele pode seguir sua viagem.
Esse trecho sem nada é famoso por ser violento, isolado e perigoso. Não existe polícia em lugar algum.
Os caminhoneiros locais foram enfáticos em alertar para dormirmos apenas onde houvessem vários caminhoneiros dormindo juntos.
Foi o que fizemos e nossa experiência na região foi bem tranqüila.
Há cerca de dois anos atrás, uma família inteira de viajantes estrangeiros foi assassinada fazendo um acampamento selvagem.
Alguns postos são simples, caminhão-pipa parado na beira da estrada.
Foram em lugares assim que dormimos durante as noites que passamos neste trecho.
Passamos pela região de Amur, onde a Rússia faz fronteira com a China.
É lá que estão os lendários tigres siberianos. O maior felino que existe.
Não vimos nenhum, mas eles estão lá, soltos na natureza!
Contornar a China sem poder cruzar a fronteira, deu câimbra no coração. O Tapa não poderia entrar e se quiséssemos entrar com o Farofamovel seríamos obrigados pelo governo chinês a pagar uma fortuna para um guia andar junto com a gente o tempo todo.
Sem chance.
Nas paradas, sempre aparecia algum russo engraçado puxando papo. Desta vez, um cara chamado Alexander.
Perguntou de onde eu tinha vindo com aquela Toyota, que segundo ele, parecia ser uma bosta... Hehehe.
Debochado, fingiu dar três cusparadas no capo do Farofamóvel e pediu para eu esperar dez minutos que ele me mostraria um carro de verdade.
E o cara me aparece com uma Toyota Land Cruiser de quatro metros de altura, pneus gigantescos, motor de caminhão alemão, eixo de trator e o "escambal".
-Só tem um veículo deste na Rússia inteira! Uso para caçar! Atravessa qualquer rio, qualquer espessura de neve e lama... Huahauha... Lama é o menor dos meus problemas!
A aparência de sua viatura ogra não deixava dúvidas que ele dizia a verdade.
Abriu o carro, e orgulhoso mostrou um enorme teto de vidro que recolhia. Ali dava para ele e mais três amigos ficarem em pé distribuindo pipoco em qualquer criatura que se movesse pela floresta siberiana.
Se ele dissesse que caçava com granadas e lança mísseis, eu acreditaria.
Que figuraça!
Eu gostei muito dos russos e Alexander representava bem o russo da Sibéria. Grosseiro, engraçado e gente boa.
Na Sibéria, sem dúvida, não existe espaço para frescura. Acho que nem existe a palavra frescura em russo.
Chegamos a Vladivostok, no mar do Japão, e tratamos de empacotar logo o Farofamóvel para a longa e demorada jornada de volta para a América do Sul.
Sem o Farofamóvel a viagem fica mais complicada e bem mais cara.
Malas voltam a ser um transtorno necessário e hotéis que aceitem nosso fedorento viram uma obsessão (tente achar o Tapa nessa foto.. Hehehe).
Nesta longa travessia siberiana a lição que aprendi é que quando temos um objetivo muito, muito distante é importante dividi-lo em objetivos menores. Objetivos intermediários são a maneira mais clara de entender o quanto se andou e o quanto falta para chegar a um objetivo final.
Em toda a jornada, batemos com a cara na porta seis vezes (Panamá, Canadá, Mauritânia, Egito, Arábia Saudita e Paquistão). Tivemos que andar para trás várias vezes e traçar uma rota completamente diferente da planejada. Mas, no final, os obstáculos que encontramos serviram apenas para nos levar para caminhos ainda mais fantásticos, para lugares ainda mais lindos.
Às vezes, quando tudo parece estar dando errado, é apenas o destino trabalhando a nosso favor. Forçando a traçarmos um caminho melhor. Um caminho que não conseguíamos enxergar.
Comidas e bebidas maneiras |
Viajar pela Rússia foi uma experiência única. Após alguns meses pesquisando sobre aquele país tão distante e com pouquissimas informações disponíveis, principalmente para overlanders, posso dizer que passar por aquela fronteira e chegar ao nosso objetivo final, em Vladivostok, no mar do Japão, foi motivo de orgulho. Passar para o lado de lá da cortina de ferro teve um gostinho especial. Poucos foram os que se aventuraram por aquela terra, principalmente pelo temida Rodovia Transiberiana, onde passamos a maior parte do tempo no pais. A comunicação foi um dos grande problemas durante a nossa travessia por lá, se não o maior. É ínfima a quantidade de pessoas que falam inglês e as que falam... É melhor nem comentar. Até mesmo nos hotéis para turistas a dificuldade foi grande... Depois de um certo tempo, como eles não entendiam nada do que falávamos, começamos a “mandar” o português mesmo, eles respondiam em russo e ficava tudo certo. Tem certas horas que a saida é relaxar e ver no que vai dar. Comer na Rússia não é barato, assim como nada por lá, a não ser o combustível. Então, tinhamos que escolher bem onde e o que iriamos comer. E escolher o que comer também não foi tarefa fácil. Os supermercados quase não possuem produtos importados... E os que haviam não nos interessavam. O queriamos mesmo era "cair de boca" nos caviares e petiscos locais. O caviar nos acompanhou durante todo o tempo, pois era muito barato.
Para todos os bolsos e gostos, comemos alguns dos melhores caviares das nossas vidas.
Com torradinha ou com uma fatia de pão, foi nosso lanche por dias e dias. Que sorte! Nos restaurantes, a tarefa de escolher um prato para comer também foi árdua. E até que em alguns lugares encontramos cardápio em inglês, mas inacreditavelmente, até assim era difícil fazer os caras entenderem o que queríamos. Chegar a um restaurante, zarolho de fome, e encontrar um carpádio com indecifráveis letrinhas...
... No inicio, ficávamos confusos, mas no final estávamos até rindo da situação...Vivendo e aprendendo. Para nossa surpresa, o Mc Donald´s russo foi o único, de todos os países que visitamos, que não tinha cardápio em inglês.
Poucos dias antes de entrarmos no pais, aconteceu o devastador tsunami no Japão e, com ele, o vazamento de radioatividade em regiões próximas ao país, entre elas, a Rússia. Ficamos cabreiros, pois adoramos frutos do mar e a recomendaçao era para não comer nada importado do Japão e adjacências. Então o que podiamos fazer era checar o local de procedência das coisas. Foi realmente azar, mas nunca havíamos estado tão próximos ao Japão, país o qual adoramos sua culinária e foi difícil abrir mão de comer nos restaurantes japoneses. Porém, resolvemos confiar no bom senso alheio e com a sorte, que tem nos acompanhado exaustivamente durante toda nossa jornada, e comemos num excelente restaurante. Não tivemos do que nos arrepender!
Para quem não sabe, assim como nós não sabíamos, os russos adoram panquecas! E elas são o que há de melhor no café da manhã dos caras.
Elas não estão só na primeira refeição do dia, mas também no almoço e no jantar. Nestas duas últimas, eles costumam comer com caviar e até que fica bem gostosinho.
E por falar em café da manhã, os russos são trogloditas nas primeiras horas do dia e comem muito! Nos buffets, muito arroz, saladas, peixe etc... Definitivamente há gosto pra tudo. A Russia é um pais de cristãos e não foi dificil perceber que a Páscoa se aproximava. Bolo de Páscoa e outras guloseimas desta época do ano eram encontradas por todas esquina, e as quituteiras orgulhosas exibiam sua arte em todo canto.
Outro momento culinário marcante foi quando passamos uns dias próximos à fronteira da Mongólia e aproveitamos para conhecer um pouco dos que eles comem por lá. Encontramos na regiao de Irkutsk um restaurante de comida típica mongol e nos acabamos de comer.
Muitos vegetais, carnes, arroz, macarrão, tudo muito saboroso.
O pierogui, pastel típico da Polônia, Letônia e Lithuânia, também está presente na Russia. Sorte a nossa, pois adoramos! Também comemos alguns rangos bem saborosos por lá...
... Alguns não muito diferentes do que estamos acostumados...
... Até que, num certo dia, em um dos trechos mais frios do país pedimos um peixe para comermos e... Veio um peixe CONGELADO!!! Pô, peixe congelado num dos locais mais frios do pais? Não é possível! Chamamos a garçonete novamente e dissemos que o peixe servido estava congelado... Ela riu e disse que era assim mesmo. E este tal peixe é um dos principais acompanhamentos para a a famosa vodka russa. Rimos um bocado da nossa ignorância no assunto, pedimos desculpas e comemos o peixe todinho! Falando nele, o peixe foi uma das coisas que mais comemos por lá, preço mais acessível do que a carne... Nos fartamos.
Na região de Ulan Ude, próxima à Mongolia, eles são vendidos defumados para acompanhar o caviar, ou o caviar acompanhá-lo.
Fica a seu critério! Na última cidade antes dos famosos 2500km da Transiberiana, onde não teríamos acesso a supermercados, restaurantes etc, lotamos o carro com água e comida para nos atender nos dias em que ficaríamos isolados do mundo.
Durante esses dias em que atravessamos a Transiberiana, fomos movidos a café e chá para ficarmos acordamos durante a viagem. Os dias eram longos, já que acordávamos muito cedo, e volta e meia o sono nos batia à porta. Então, tratei de colocar nossa “chaleira” elétrica na frente conosco, nescafé e adoçante... E pronto!
Nosso energético ficava pronto em poucos segundos e, assim, podíamos seguir adiante renovados. Comemos um dos melhores pratos destes dois anos de jornada em Vladivostok, em um restaurante chinês. Este também foi um dos mais caros, mas valeu a pena cada centavo... “Duck of Luck”, esse era o nome do prato.
O prato especialidade do restaurante vinha com um show especial do Chef de cozinha, que cortou o pato todinho na nossa frente e nos ensinou a comê-lo à moda chinesa. Que espetáculo! Que prato! Que delícia! Nunca vimos tantos bêbados juntos como na Rússia. O povo bebe muito, a todo momento e em qualquer situação. Era comum nas primeiras horas do dia, vermos os caras já entornando uma branquinha. Não foi raro encontrarmos com uma família, comemorando o casamento de alguém, já de manhã cedo e tomando vodka! Haja fígado! Também vimos muita briga e discussão nas ruas por conta disso. Como não curtimos bebida destilada, queriamos mesmo era encontrar a boa e velha cervejinha gelada...
O que não foi difícil. Em qualquer buraco tem uma birosca vendendo uma cerva.
As mais baratas são vendidas em garrafas pet...
... E fazem o maior sucesso.
Mas também tem as boas e deliciosas garrafinhas “lang lang” às quais somos devotos e não nos decepcionamos com nenhuma.
A Rússia foi um grande marco em nossa jornada. Viajar pelo maior país do mundo, com poucas informações, como tínhamos, foi estimulante e gratificante. E percorrê-lo de ponta a ponta foi como ganhar um troféu... De perseverança e da real vontade de concretizar a tão sonhada volta ao mundo. Nossa experiência pelo mundo está começando a terminar... E se esse grandioso “início do fim” está sendo tão magnífico, e ainda temos quer percorrer meio mundo para voltarmos para o nosso saudoso Brasil, isso pode ser sinal de que o que veremos pela frente pode ser ainda mais fantástico. A expectativa é grande! Nos vemos na Coreia do Sul! Saúde!
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